quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Uma paixão que vem de berço

Diz o evangelista que não se serve a dois senhores. Tenho minhas dúvidas! Uma certa devoção devoção toma ares de religião e vira país. De estado nada laico. A aura dos fiéis escolhidos expande qual maremoto, às vezes cegando a razão. Mesmo ante epopéias vitoriosas, esse povo não verga à mais humilhante derrota. Torna-se ainda mais forte!

Meu corintianismo vem de berço. Literalmente! Enquanto eu nascia, um mar alvinegro encontraria o Rio. Foi uma loucura. Setenta mil fiéis dividiam a Meca do futebol com os aristocratas tricolores. Sob chuva, a garra operária desmontava a máquina e ia à final do Campeonato Brasileiro.

A paixão plantada por Licinho, meu padrinho, levou mais de uma década para florescer. Contra todos, eu torcia para aquele time que ressurgira da última colocação para disputar o título paulista de 87. Mas, do outro lado estava o São Paulo, campeão brasileiro. E, caprichoso, o destino fazia a glória fugir. Pior: fez a bola de Mauro morrer no travessão.

A frustração se traduziu em lágrimas. Mesmo entristecida, a Fiel aplaudiu o time de pé.

De 88 não escapou. Já no tempo extra, Wilson Mano batia de fora. E um garoto de 19 anos contrariara a física e desviara a história com o pé direito. O meu grito tão represado se misturava ao de Luiz Alfredo. “Gooooooooool do garoto Viola!”

Venci! E a emoção desabou sem que eu sequer sentisse. Nem pude perceber a cartada certeira do destino. Neto, o ascendente craque bugrino e corintiano desde sempre, se tornaria algum tempo depois um de meus heróis, que comandaria a vitoriosa jornada do primeiro título nacional.

Já consolidada, aquela árvore era cultivada pela genealogia. Não dá pra esquecer Jairo, meu tio, que me levou para uma partida decisiva contra o Flamengo, pela primeira Copa do Brasil. No primeiro jogo, dois a zero pra eles. Num tempo sem divisão de torcidas, acompanhávamos sempre o lado em que o Corinthians atacava. Da amarela, eu vi Neto abrir o placar com um gol olímpico. O Galinho empatava minutos depois, de cabeça. Mas mandávamos no jogo, e abrimos um 4 a 1 suficiente para seguir em frente.

O que não esperávamos é que, a três minutos do fim, Junior revertia a vantagem definitivamente. No ano seguinte, Neto comandaria a jornada vitoriosa de 90. A batalha contra o Atlético-MG se tornou um símbolo, pois o xodó operara um milagre. No primeiro jogo, perdíamos por 1 a 0 até os 36 do segundo tempo. Em menos de dez minutos, ele virara o jogo.

Em minhas andanças corintianas, percebi a ojeriza despertada em torcedores de outros times. Na decisão de 87, eu estava em um passeio com a família. No carro, havia mais cinco pessoas. Dessas, quatro estavam torcendo contra – três são-paulinos e um palmeirense - e um se manteve neutro. Na decisão nacional de 98, o Cruzeiro fazia valer o seu mando de campo: abrira contundente dois a zero. Uma saraivada de fogos saudava a vantagem cruzeirense. Mas Dinei e Marcelinho trataram de dar à euforia um ponto final. E aí, eu fui até a varanda e gritei: “Estourem fogos agora, seus...” Bom, deixa pra lá.

Esse sentimento é tanto que a derrota do Corinthians provoca nos outros uma felicidade incalculável, talvez maior do que as vitórias de seus respectivos times. É tamanho que uniu Grêmio e Internacional, inimigos mortais, em uma só torcida pela queda. E mesmo no capítulo mais trágico de sua história, o fiel se mostra digno. Tentou evitar o pior o quanto pôde. Não conseguiu! Mas avisou: “Eu nunca vou te abandonar”.

Acima de tudo, aprendi que ser corintiano não é uma vida de emoções, mas uma emoção só em toda a vida, na qual estão contidos a alegria pela vitória, o desprezo pela apatia, o desalento pela queda e, mais do que tudo, o indescritível prazer pela ressurreição. Nada mais glorioso do que a mítica conquista de 77, que dava fim a mais de duas décadas de injuriosa fome de títulos. Devotos de Jorge que somos, valorizamos a luta, mas isso não significa que damos de ombros para o talento. O nosso hall de lendários lá os seus guerreiros, como Casagrande, Biro-Biro e Baltazar, e os seus “escolhidos”, como Basílio e Viola. Mas a essência é de quem fazia da bola o fino, como Neco e Neto; Teleco e Sócrates; Luizinho e Palhinha; Cláudio e Wladimir; Rivelino e Carlitos.

Seja como for, agradeço a vocês por fazer deste século uma coisa especial. Nasci história, cresci consciência e vivo epopéia. Porque o Corinthians existe!